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Em quantos pontos de vista seria possível ancorar uma apreciação justa e equilibrada da importância de Nelson Rodrigues para o Brasil?
A pergunta é tão caprichosa que requer um comentário. É necessário admitir que a adoção de um ponto de vista qualquer hierarquiza os demais, deixados de fora, e isto já coloca um problema gigantesco para quem se atreva a levar a questão adiante. Por outro lado, no leito de uma mesma cautela contra a promoção de escalas valorativas arbitrárias, não se poderia pensar Nelson como cronista, dramaturgo ou ideólogo, sem reduzir-lhe a amplitude da frequência com que opera nos campos preteridos.
A fórmula sob a qual nos abrigamos é, portanto, exprimível, mais ou menos assim: Nelson Rodrigues foi um homem que mudou o modo de o Brasil ver a si mesmo e isso vale tanto para uma antropologia urbana dos costumes quanto para uma análise da evolução da dramaturgia, para ficarmos em dois exemplos rigorosamente distintos e distantes um do outro.
A modelização de nossa sensibilidade sobre os hábitos familiares foi forçada, a partir da ampla difusão das crônicas e da dramaturgia de Nelson, a considerar um conjunto de valores sobre os quais se fazia pétreo silêncio. E mais: tais valores – fidelidade, lealdade, maternidade/paternidade, autoridade, retidão, solidariedade, justiça etc – não encontraram um intérprete que os tenha meramente problematizado; o grande legado de Nelson é ter tornado essa discussão palatável pela hiperbolização de seu momento negativo: o adultério, a traição, as taras de mães e pais, a tirania, o desvio, o egoísmo, a injustiça ganharam carnes, roupas, um penteado bacana e um sotaque de Brasil.
O achado não poderia ter sido mais eficiente para o desrecalque do Brasil, porque entrava pela porta da estereotipia: a mulher que gosta de apanhar como um dispositivo construtor de infindáveis histórias não era só uma provocação machista, mas um dedo na ferida que nos obrigou, em certa medida e dentro de certos limites, a travar o debate público das intimidades! Prova disso, por curioso que pareça, são os temas para os quais amadurecemos tardiamente: somente hoje a paixão de tios tarados por sobrinhas pré-adolescentes seria um tema ao qual reagiríamos com grande veemência. À época de sua utilização artística, o que hoje é, claramente, um comportamento execrável, como é o caso da pedofilia, passou por um retrato fiel (e, para alguns, de mal-gosto) das inclinações eróticas do macho brasileiro de tipo mediano.
Carregando para fora dos palcos essa assustadora procissão de monstruosidades – com as quais, é forçoso que se diga, tínhamos tanta familiaridade –, Nelson se postou como ideólogo do desrecalque. No meio intelectual puritano e, simultaneamente, safadinho em que a inteligência brasileira circulava, sua presença incômoda teve um destino curioso: oráculo dos reacionários e pitonisa dos liberados, a figura de Nelson se afirmava como astuto intérprete das verdades escondidas. Passou a exercer o fascínio que, agora, no seu centenário, dá ainda provas de vigor.
Quaisquer que sejam os pontos de vista adequados para o justo ajuizamento de sua importância para a nossa ideia do que seja o Brasil de hoje, todos esses pontos de vista precisam percorrer a mesma trajetória: projetar-se no interior de uma personalidade que tanto tem de autêntica quanto de inventada, para, depois de cumprida essa compenetração indispensável, retornar a um ponto exterior a nós e à personalidade mítico-histórica do artista-intelectual. Esse ponto exterior, visão radicalmente de fora, não pode ser outro senão aquele da maturidade do pensamento artístico-cultural nacional e isso sem deixar de reconhecer uma dupla contingência: Nelson Rodrigues é produto e produtor dessa maturidade. Sem ele, não nos (re)conheceríamos hoje tão bem quanto o fazemos.
(Publicado em A União, João Pessoa, 23.08.2012)