Tradição é uma coisa. Conservadorismo é outra.

 

 

 

 

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Conversa boa é com quer quer ouvir. Com quem não quer, é perda de tempo. Adianto, portanto, o que quero dizer, para permitir que os moucos abandonem a leitura aqui, se for o caso. Não vejo motivo para uma resistência tão encarniçada à ideia de transferir o Parque de Exposições do Crato para outro local. Isso não é “acabar com a Exposição” nem “destruir a memória da cidade”. Por outro lado, mudar de lugar não significa que a Exposição vá ser melhor ou pior.

É importante, inclusive, lembrar como existe um curioso movimento de ambivalência afetiva quanto a essa festa. As pessoas se queixam da programação (a do ano passado sempre parece ter sido melhor, embora, no ano passado tenha parecido ruim, se comparada a do ano anterior e por aí vai), se queixam de que a casa está cheia de visitas (parente é visita?), que o preço de tudo está muito caro, de que não tem estacionamento e que os flanelinhas são uns bandidos etc. Reclamam da temporada de moscas que toma conta da cidade depois da festa, porque os ovinhos de moscas gostam de bosta de vaca, ao que parece. A limpeza pública é que não gosta… Mas reclamam também do barulho, dos pequenos furtos que aumentam nos bairros e no centro. Enfim, reclamam. Mas adoram a Expocrato. Sequer cogitam deixar de marcar a ilustre presença.

O fato é que não há nenhum destaque paisagístico ou arquitetônico que reforce a tese de que o Parque deve continuar encravado na cidade. A ideia de que há um patrimônio imaterial é mais forte, mais “ribusta”. Só não foi nunca acompanhada da iniciativa de valorizar essa memória. Não há um espaço permanente, com documentos, fotos, objetos, que patenteiem esse interesse tão vigoroso. Claro, isso não é critério exclusivo. É só um sintoma. Mas, mesmo assim, é fato: o interesse pela exposição começa pela programação artística e termina no último dia da festa. A importância do evento, que eu reconheço, exigiria mais.

Negar que é indicativo positivo buscar acomodações mais adequadas, do ponto de vista acústico e sanitário, por exemplo, não me parece argumento consistente. A mobilidade dentro do Parque é extremamente desumanizada, como se não houvesse cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida ou limitações de visão, por exemplo. Aliás, ignora-se até que as pessoas têm, geralmente, bexiga e intestinos.

O que parece claro é que o ambiente de conservadorismo se disfarça de preservação das tradições. Não pode sair do lugar porque sempre foi ali e pronto. Isso não é argumento para se começar um debate. Se os animais sofrem com as condições de confinamento, não importa. Se tem um hospital a uma quadra, com zona de silêncio demarcada, ignora-se. A mudança de lugar não é, no quadro colocado, benesse conferida pelas elites locais, por isso não parece sequer plausível pensar no assunto. Só quem pode mudar as coisas na cidade é a elite da cidade, que, inclusive, ficou muda quando o patrimônio arquitetônico foi posto abaixo por um prefeito com complexo de tatu (vivia cavando buraco).

Negar-se a pensar a mudança é conservadorismo, não é respeito à tradição. É servilidade vocacional ao Poder.

“INDIOTA” NÃO, POR FAVOR!

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Meus professores, na Universidade, eram semi-deuses. Alguns, se posso ser leal aos fatos, tentavam até esconder a metade gente. Uns poucos, poucos mesmos, eram de mitologias periféricas de terceiro mundo… Mas a grande parte tinha pedigree olímpico. Perto de uns, eu nem conseguia falar.

Esse encanto é algo que não dá pra comunicar, principalmente pela ambiguidade afetiva que existia. Entre o conhecimento que eu e meus colegas buscávamos e nós mesmos, era necessária a presença daqueles mestres. Nós os admirávamos, mas também zombávamos deles. Cada um com seu estigma, motivo de nossas piadinhas sórdidas. Mas o desrespeito era cuidadosamente consumido como contravenção. O primeiro que rompesse o código da Omertà discente e levantasse a voz contra o professor era arremessado ao ostracismo, tornado pária, um miojo humano.

Era possível, permitido e apreciado o confronto, não entendam mal. “Brigar” com o professor é que não podia. Desafiar, enfurecer, provocar, tirar do sério… tudo podíamos. Mas desrespeitar não.

No ensino fundamental e médio, a lei do respeito era quase idêntica. Mas as brincadeiras infantis e, depois, os hormônios deixavam pouco tempo para admirar quem não estivesse ao alcance imediato de nossa compreensão de crianças ou da perfeição sem plumas da adolescência. Na universidade, já havíamos apanhado o suficiente para dar, voluntariamente, a mão à palmatória.

Não sou nostálgico. Não tenho saudades desse tempo. Não acho que agora está tudo pior. Pelo contrário, melhoramos e vamos em frente. Porém, sempre há um porém. De modo geral, meus alunos são gentis comigo. Não sou tolo de achar que não zombam nem especulam sobre as zonas sombrias de minha alma atormentada. Dou o maior apoio, aliás. O que me deixa realmente entristecido é que aqueles que ultrapassavam a linha e se destacavam em combate desapareceram. Não há mais os párias que gritam: “você é um idiota”! E quando gritam, dizem “indiota”. O tempora o mores!

Coerência demais, ofende.

Temos mais referências do que precisamos. Garrincha, Sócrates, Neymar. Chico, Vinicius, Wesley. Clarice, Lygia, Bruna. Rosa, Ramos, Amado. É isso mesmo. Ninguém leu errado. Quando as referências hiperabundam, é porque sua criteriologia é rala, sem capacidade de propor afastar o incomum do banal, o bom do ruim… Nessa hora, concedemos ao medíocre o mesmo valor que dispensamos ao excepcional.

Claro, não pretendo que passe por verdade indiscutível o que é apenas opinião. E pior, a minha opinião. Quantas vezes apreciei mal e me vi, anos depois, encantado com aquilo que me era indiferente ou nauseado diante do que me fazia perder o fôlego de tanta admiração. Devagar, vamos aprendendo que essas escolhas literárias – e de todos os outros tipos – acabam sendo expostas ao esmeril do tempo e ao martelo da experiência… Logo, não me privo do direito de, no futuro, rever o que digo aqui e afirmar, cheio de novidades: “Pessoal, saibam que Jorge Amado é muito é bom”.

 Mas, hoje, incluindo algumas décadas já suportadas por esta carcaça que aqui escreve, não gosto de Jorge Amado, não vejo motivo para rever meu desgostar e ainda corro o risco de não gostar de quem goste. Apreciar literatura tem dessas coisas e precisa ter. Já nos tornamos narcísicos hiperbólicos no trabalho, na vida a dois, na maledicência do cotidiano (raro prazer…) e em tantas outras coisas. Nas minhas paixões literárias, quero nenhum espelho, quero nenhuma opinião raciocinada, quero só paixão.

Assim, desabafando meu desamor – que ninguém pediu para ouvir, estou ciente –, não estou fazendo proselitismo de qualquer espécie. Se eu acho o Jorge Amado um tipo de “Cid Moreira” da literatura, é problema meu. Não gosto da forma como a mulher é configurada na obra do cara; não gosto de como o trabalhador aparece lá e não gosto de como os patrões circulam nesse mundo.  Tieta é um risível Edmond Dantès dos peitões. Dona Flor devia se tratar. Tereza Batista é uma ideia que transa. Em síntese, “ar maria, nam”!

Mas gosto do Berro Dágua. Gosto como gosto de tudo que esbanja vida e que ri e que goza e que sustenta um estar-aí provocativo e debochado. Gosto do clima de devaneio, temperado com uma seriedade que faz rir. Era isso que eu precisava dizer, então vou aproveitar e repetir: o Quincas é simplesmente grande, bem mais do que tinta e papel. Posso não gostar de Jorge Amado, mas não teria conhecido o velho cachaceiro do Quincas se não tivesse traído meu desgostar… Coerência demais, ofende.

LEITURAS OBRIGATÓRIAS – LITERATURA BRASILEIRA II – TURNO MATUTINO

As obras listadas a seguir são as LEITURAS OBRIGATÓRIAS apenas para quem matriculou Lit. Brasileira II pela manhã. A turma da noite está aos cuidados de Lúcia Agra.

 

I-JUCA PIRAMA – GONÇALVES DIAS

NOITE NA TAVERNA e MACÁRIO – ÁLVARES DE AZEVEDO

MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS – M. ANTONIO DE ALMEIDA

SENHORA e O GUARANI – ALENCAR

O JUIZ DE PAZ NA ROÇA – MARTINS PENA

IAIÁ GARCIA, DOM CASMURRO e MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

O ATENEU – RAUL POMPEIA

BOM-CRIOULO – ADOLFO CAMINHA

Sou do tempo do boicote.

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Definitivamente, descobri que sou do tempo. Pra encurtar, digamos que sou do tempo disso e daquilo. Identifica-se facilmente o tipo de pessoa que sou porque dizemos “No meu tempo…”

Pois bem. No meu tempo, já teríamos feito uma lista bem completa das marcas, fabricantes e produtos que patrocinam essa porcaria de BBB e lascado um boicote nos couros deles.

Se o “bróder” Zé usa Rexona, Rexona era pra mofar nas prateleiras dos supermercados.

O único jeito seria inventar marcas tão falsas quanto as crônicas do Bial e restringir o uso de todas (inclusive, das crônicas) ao zoológico-oligofrênico-midiático da “Casa”.

Já posso até sugerir uma marca de papel higiênico…

RETROSPECTIVA DO ANO QUE VEM

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O ano parecia que ia começar com as tradicionais preocupações com despesas, impostos e outros aborrecimentos. Felizmente, como queríamos deixar tudo isso em 2012, o ano novo teve que começar depois do Carnaval. Para nos distrairmos, BBB e o final de Salve, Jorge (saudada como um fenômeno da televisão). Mesmo com tudo parecendo requentado, agimos como se vivêssemos em um novo tempo. Decisão sensata, como se pode ver no Facebook.

Depois do carnaval, chegou a hora de começar a pensar nas férias de meio do ano e nos festejos juninos. Enquanto junho não chegou, ficamos todos repetindo as mancadas de 2012, que, apesar de serem mancadas, nos ajudaram a exorcizar o fantasma do desconhecido. Assim, fomos tolerantes com os governantes e intolerantes com os partidos. Como se nós fôssemos a Globo, entende? Exercendo nosso direito de expressão, falamos muito e continuamos fazendo o mínimo. Decisão sensata, como se pode ver no Facebook.

Julho serviu para nos prepararmos para enfrentar agosto, mês do cachorro louco. Setembro é como uma quarta-feira antes de feriadão, então pulamos para novembro. Hora de falar do fim do ano e do desejo de renovação. Enchemos nossos corações de sinceras intenções de assumir o controle de nossas vidas. Decisão sensata, como se pode ver no Facebook.

Dezembro é hora de falar de 2014, evitando assim o desconforto de pesar com seriedade o que realmente fizemos ao longo do ano. É que isso parecia incômodo para um período de festas e confraternização. Decisão sensata, como se pode ver no Facebook.

O CENTENÁRIO É UM LUGAR DE ONDE SE POSSA, AFINAL, VER NELSON RODRIGUES

Em quantos pontos de vista seria possível ancorar uma apreciação justa e equilibrada da importância de Nelson Rodrigues para o Brasil?

A pergunta é tão caprichosa que requer um comentário. É necessário admitir que a adoção de um ponto de vista qualquer hierarquiza os demais, deixados de fora, e isto já coloca um problema gigantesco para quem se atreva a levar a questão adiante. Por outro lado, no leito de uma mesma cautela contra a promoção de escalas valorativas arbitrárias, não se poderia pensar Nelson como cronista, dramaturgo ou ideólogo, sem reduzir-lhe a amplitude da frequência com que opera nos campos preteridos.

A fórmula sob a qual nos abrigamos é, portanto, exprimível, mais ou menos assim: Nelson Rodrigues foi um homem que mudou o modo de o Brasil ver a si mesmo e isso vale tanto para uma antropologia urbana dos costumes quanto para uma análise da evolução da dramaturgia, para ficarmos em dois exemplos rigorosamente distintos e distantes um do outro.

A modelização de nossa sensibilidade sobre os hábitos familiares foi forçada, a partir da ampla difusão das crônicas e da dramaturgia de Nelson, a considerar um conjunto de valores sobre os quais se fazia pétreo silêncio. E mais: tais valores – fidelidade, lealdade, maternidade/paternidade, autoridade, retidão, solidariedade, justiça etc – não encontraram um intérprete que os tenha meramente problematizado; o grande legado de Nelson é ter tornado essa discussão palatável pela hiperbolização de seu momento negativo: o adultério, a traição, as taras de mães e pais, a tirania, o desvio, o egoísmo, a injustiça ganharam carnes, roupas, um penteado bacana e um sotaque de Brasil.

O achado não poderia ter sido mais eficiente para o desrecalque do Brasil, porque entrava pela porta da estereotipia: a mulher que gosta de apanhar como um dispositivo construtor de infindáveis histórias não era só uma provocação machista, mas um dedo na ferida que nos obrigou, em certa medida e dentro de certos limites, a travar o debate público das intimidades! Prova disso, por curioso que pareça, são os temas para os quais amadurecemos tardiamente: somente hoje a paixão de tios tarados por sobrinhas pré-adolescentes seria um tema ao qual reagiríamos com grande veemência. À época de sua utilização artística, o que hoje é, claramente, um comportamento execrável, como é o caso da pedofilia, passou por um retrato fiel (e, para alguns, de mal-gosto) das inclinações eróticas do macho brasileiro de tipo mediano.

Carregando para fora dos palcos essa assustadora procissão de monstruosidades – com as quais, é forçoso que se diga, tínhamos tanta familiaridade –, Nelson se postou como ideólogo do desrecalque. No meio intelectual puritano e, simultaneamente, safadinho em que a inteligência brasileira circulava, sua presença incômoda teve um destino curioso: oráculo dos reacionários e pitonisa dos liberados, a figura de Nelson se afirmava como astuto intérprete das verdades escondidas. Passou a exercer o fascínio que, agora, no seu centenário, dá ainda provas de vigor.

Quaisquer que sejam os pontos de vista adequados para o justo ajuizamento de sua importância para a nossa ideia do que seja o Brasil de hoje, todos esses pontos de vista precisam percorrer a mesma trajetória: projetar-se no interior de uma personalidade que tanto tem de autêntica quanto de inventada, para, depois de cumprida essa compenetração indispensável, retornar a um ponto exterior a nós e à personalidade mítico-histórica do artista-intelectual. Esse ponto exterior, visão radicalmente de fora, não pode ser outro senão aquele da maturidade do pensamento artístico-cultural nacional e isso sem deixar de reconhecer uma dupla contingência: Nelson Rodrigues é produto e produtor dessa maturidade. Sem ele, não nos (re)conheceríamos hoje tão bem quanto o fazemos.

(Publicado em A União, João Pessoa, 23.08.2012)

A Irmandade Secreta do Boi Santo no CCBNB

A peça, que ja esteve em cartaz no CCBNB em Fortaleza e no Festival Internacional de Artes Cênica no teatro José de Alencar, estará em cartaz no CCBNB Cariri nos dias 04, 11 e 18 deste mês de agosto. O espetáculo é trabalho do ator e produtor cultural José André Andrade. Indo conferir.